Facchini

Encontro histórico: o viaduto e o caminhão de 55 anos cada


Em outubro do ano passado, um jornal de Belo Horizonte, soltou editorial com o seguinte título: Viaduto que não deixará saudades. Puro engano. O texto se referia ao viaduto das Almas, no atual km 592,5 da BR-040, inaugurado com pompa em 1° de fevereiro de 1957, um dos pontos cardeais da então BR-3 (atual BR-040). Como se esquecer da estaca número 1 do impulso rodoviário do então presidente Juscelino Kubitschek, que, no mesmo dia e hora inaugurou a BR-3? Esta ligava tão somente Belo Horizonte ao Rio e o trecho realmente novo ia só até Juiz de Fora (MG). Como não se lembrar das quase cem vítimas falecidas aos pés de seus cerca de 40 pilares, parecidos com um paliteiro?
Faz um ano que o pontilhão foi substituído. Um outro, reto e de pista dupla, levou um tempo incompreensivelmente longo para ser concluído. Mas o das Almas “jamais perderá a dignidade, apesar de não ter mais utilidade”.  É o que disse o engenheiro Márcio Damázio Trindade, raro sobrevivente e presente à festa de JK, 55 anos atrás.
Ilda Marques Ribeiro Silva também estava lá. Não participou da solenidade, viu tudo “de cima do morro”. Tinha 10 anos de idade e hoje está casada com Josué Correa da Silva. Ambos tocam, com a filha Lucélia, o Restaurante da Celinha, no km 588 da mesma rodovia. Seu negócio começou com duas portinhas, junto à perigosa curva do Ribeirão do Eixo. “Naquele 1° de fevereiro, o dia estava ensolarado e na parte da tarde o trânsito foi interrompido até o alto da mineração”, lembra Ilda. Ela é filha única do ‘seu’ Totonho (Antônio Santana Marques), que tinha uma vendinha e “ganhou dinheiro fornecendo refeições aos operários da obras [do viaduto] durante um ano”.
Segundo contou, a empreiteira era a Construtora Andrade Gutierrez e a banda de música tocava, enquanto JK e comitiva percorriam a obra-de-arte, uma atração naquele tempo e à qual a Imprensa da época dedicou rasgados elogios. Quem imaginaria o ponto crítico mortal que sua charmosa curva viraria com o crescimento do tráfego? Na praça ajardinada com zelo pelo DNER de outrora e situada numa das cabeceiras do das Almas, muitos carros e gente. “Logo executaram o Hino Nacional, seguido de discursos de dentro do restaurante anexo − atualmente tudo está destruído −, amplificados para fora através dos altofalantes”, descreve Ilda.
A essa festa, o caminhoneiro Francisco Gomes da Silva não compareceu. Mas antes dos seus 18 anos, ele passava pela região com tropas, nas cangalhas, carvão vegetal. Nascido perto, em São Gonçalo do Bação, distrito próximo ao Ribeirão do Eixo e igualmente município de Itabirito (MG), deixou a enxada, a capina da mandioca e do milho para cair na estrada. Primeiro como ajudante de tropeiro, depois engraxate na praça São Vicente, região oeste de BH, trocador e motorista de lotação.
A profissão ele aprendeu num International KB5, na década de 1960. Logo pegou uma bicudinha (MB L-312), com carroceria Vieira e a partir daí começa a história do Chico Gomes, com seu Mercedes-Benz 1957, fabricado na mesma data de conclusão do viaduto das Almas. Ele o conserva até hoje, original na cabine, mas “com mecânica de carros mais novos”, acrescenta.

NO TOCO 
Uns 40 anos atrás, a então proprietária do veículo, Valdemira Andrade de Melo, resolveu reconvertê-lo em caminhão, sempre com o Chico Gomes ao volante. Na metade dos anos 1960, os dois mudaram o rumo do caminhão, colocando-lhe uma caçamba para tentar o serviço de minério. Não funcionou. Correu para a terraplenagem e o resultado continuou fraco. Afinal, Valdemira e Chico adotaram a carroceria aberta para carga seca e jogaram o Bicudinho na estrada. “Comecei a levar carga do Rápido 900, esta ainda na rua Paquequer, na parte boêmia do bairro Lagoinha de BH”, explica . Corriam os primórdios dos irmãos Antônio, Venâncio e Paulo Sérgio Silva, pioneiros do TRC mineiro. No entanto, os ‘ganhames’ de Chico Gomes não satisfaziam. Assim ele decidiu parar de viajar porque “estava casado de pouco”.
Inesperadamente, a proprietária Valdemira preferiu ofertar o L-312 para “abater na rescisão”. Dali, Chico saiu dono do primeiro caminhão, o qual manteve rodando e aprumado até hoje. Ele resistiu à febre do terceiro-eixo adaptado, na virada dos 1960 para os 1970, porém não foi por gosto. “Havia dificuldades técnicas para trucar o 312”, diz ele. E foi ótimo para a melhor harmonia do visual do bruto. Pelo resultado, ele não esconde a vaidade quando percebe que “o pessoal não pode me ver passar na pista”, referindo-se à sua força chamativa.
Guindado à condição de carreteiro, como era chamado o autônomo daqueles idos, Chico Gomes correu mundo.  Pegava telhas de amianto na Brasilit, em Contagem (MG), descarregava em Brasília e voltava com arroz de Anápolis (GO). Em pouco tempo virou para São Paulo, Passou a carregar na Asa Branca, na Interbrasil, na Novo Mundo, na Della Volpe. Nomes que fazem parte da gloriosa história do TRC nacional. Carregava de seis a sete toneladas, para entregas em Osasco, Santo André ou São Paulo. “Naquela época tinha muita carga”, comenta.  No final do governo Sarney, conseguiu pegar embarques diretos do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Eram placas de gesso, destinadas à modernização das agências desses bancos no interior. Com frete digno, comprou mais caminhões e os colocou nas mãos de parentes. Mas, como confessa, não foi sua melhor ideia.  Possuiu um cara-chata MB LP-321 por dez anos. Sem deixar de lado o preferido L-312. “Não vou vendê-lo nunca”, afirma Chico Gomes.
No começo da década de 1990, ele perdeu os bancos oficiais como clientes e retornou ao chamado mercado aberto. Ficou com a mineira Jamef, como agregado. Só na apanha dentro da cidade. Finalmente, migrou para o ferro-e-aço, em entregas também locais. Chico garante que “sempre teve muita responsabilidade ao volante”, embora confesse que “deu muita banguela nesses 55 anos de estrada”. Seu intuito era poupar combustível: “Se dava para facilitar o óleo diesel, eu soltava mesmo”. Admite ter chegado a 80-90 km/h de morro abaixo. Então, “no viaduto das Almas, na época do regime militar, eu descia de ponto-morto por ali afora. O velocímetro marcava 90 km/h e ia embora”, diz com jeito de quem não errou. Para justificar, destaca que “o movimento era fraco e fazia tudo com segurança”. A despeito do ponto de vista quanto à direção, o são-gonçalense envolveu-se apenas em dois acidentes ao longo dessas cinco décadas ao volante. Ambos decorrentes de falhas de terceiros, conforme relata. Em um deles, teve a perna quebrada e longo período de inatividade e recuperação.
Chico tem um segundo caminhão. Um MB 2013, com o não bem-falado truque de fábrica. Ele alterna o seu trabalho atual entre os dois. No entanto, sua intenção é “parar de mexer com caminhão”, apesar de “gostar muito de viajar”. Acha que aos 72 anos de idade, “o trabalho já não é a mesma coisa”. Além disso − diz ele −, “o trânsito não ajuda mais”. Queixa-se que “está tomando medo da estrada”. Levar uma carga a Sete Lagoas (MG), “já me estressa”. A seu ver, “as passagens não estão cabendo e o sufoco diário fica cada vez maior”. Chico Gomes nunca comprou caminhão zero km, por temer o risco da dívida de longo prazo. “Sempre achei que o que vale é o nome”, afirma convicto.
FONTE: Carga Pesada 
NOTÍCIA ANTERIOR PRÓXIMA NOTÍCIA