A grande maioria dos motoristas encara o ato de dirigir como uma atividade automática, realizada quase por impulso. Mas por trás de ações aparentemente simples, como ligar o veículo, acelerar, engatar marcha e frear, existe toda uma complexidade que exige boas condições físicas e mentais de quem está no comando.
Conduzir uma moto, um carro, um ônibus ou um caminhão requer concentração, atenção, rapidez nos reflexos, coordenação motora, equilíbrio, boas condições de visão e audição e discernimento para avaliar riscos. Por esse motivo, é preciso ter cuidado na hora de ingerir qualquer tipo de medicamento. Remédios aparentemente simples, como antigripais e analgésicos, podem interferir nessas habilidades e trazer consequências graves, como o envolvimento em acidentes, muitas vezes fatais.
No Brasil, não existem dados sobre a quantidade de acidentes de trânsito que são causados pelo uso de medicamentos pelos motoristas, mas uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz revela que o país está entre os maiores consumidores de remédios do mundo.
De acordo com o pós-doutor em neurofarmacologia Eduardo Carvalho-Netto, lguns princípios ativos atuam no sistema nervoso central e, por isso, diminuem os reflexos e causam sonolência. “É aí que está o perigo quando usados por motoristas que estão em atividade. Alguns medicamentos podem causar problemas sensoriais.”
O especialista explica que os remédios controlados, como os antidepressivos e ansiolíticos (usados para diminuir a ansiedade e a tensão), já têm explicitados em suas bulas as reações adversas que podem causar, mas o risco está nos medicamentos de venda livre, como é o caso dos analgésicos, antialérgicos e antigripais.
“O princípio ativo de alguns desses remédios tem anti-histamínico, que causa sonolência, tonturas e até confusão mental. O grande problema é que a venda deles é livre nas farmácias”, afirma Carvalho-Netto. A orientação é que, ao fazer uso desse tipo de medicamento, motoristas, profissionais ou não, procurem orientação com o farmacêutico para saber sobre os efeitos colaterais e as reações que o mesmo pode causar. “Em alguns casos, as reações vêm explicitadas nas bulas, em outros, isso não é tão claro.”
O taxista Wanderson Batista dos Santos, de Brasília, toma remédio controlado para pressão arterial, mas afirma que nunca recebeu nenhuma orientação médica sobre os riscos que o medicamento pode causar ao volante. “O médico sempre me orienta de todas as reações do remédio, mas nunca falou se teria algum problema em dirigir.”
Além do remédio controlado, Santos confessa que toma outros por conta própria, como analgésicos e antialérgicos. Mesmo percebendo algumas reações diferentes em seu organismo, o taxista nunca se preocupou com os riscos que o uso dos medicamentos pode causar. “Não existe nenhum alerta sobre isso, então, sempre pensei que não existia problema. Mas a gente percebe que o corpo fica diferente quando toma algum remédio. O antialérgico me dá muito sono”, conta ele.
Para Dirceu Rodrigues Alves Júnior, médico e chefe do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), é preciso ampliar as orientações sobre os riscos que o uso de alguns medicamentos, considerados simples, pode causar. “Qualquer paciente deve ser informado sobre as reações dos remédios que estão sendo receitados. Mas, muitas vezes, isso não é explicado nas consultas.”
De acordo com o médico, esse cuidado deve partir tanto do profissional de saúde quanto do paciente que precisa informar sobre a atividade que exerce. “O médico precisa ter o cuidado em informar, mas o motorista também deve analisar a sua situação antes de pegar o carro e dirigir.”
Contrário à automedicação, o motorista do transporte rodoviário de passageiros Lenoir Mendes Pinheiro também acredita que falta orientação no momento da prescrição dos medicamentos. “Na bula dos remédios, sempre estão indicados os efeitos e as reações que podem ocorrer, mas não existe um alerta específico sobre o risco de dirigir depois. A gente acaba usando o remédio sem ter esse cuidado”, diz ele.
Como forma de alertar sobre os riscos que o uso de medicamentos pode causar durante a condução dos veículos, em 2009, a Abramet desenvolveu uma proposta de projeto de lei que obrigaria as indústrias farmacêuticas a inserirem na caixa dos remédios o símbolo de proibido dirigir. “Conseguimos mobilizar algumas entidades, mas, infelizmente, até hoje, não existe a obrigatoriedade do uso desse sinal nas embalagens”, lembra o chefe do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da associação.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirma que todas as informações relativas aos riscos de determinados medicamentos estão previstas na bula, mas não há uma lista fechada de medicamentos que são incompatíveis com o ato de dirigir, pois isso varia caso a caso. A agência abriu, em 2009, uma consulta pública sobre a proposta da Abramet, mas o projeto não foi levado adiante. De acordo com a Anvisa, não há, no momento, qualquer estudo ou proposta de voltar ao tema, no sentido de normatizar essa obrigatoriedade.
Há dez anos dirigindo um caminhão, Amilton Santos Pomponeu conhece bem as reações do próprio organismo e não utiliza analgésicos ou relaxantes musculares durante a jornada de trabalho. “Sinto muito sono depois de tomar esses remédios, e não tenho condições de dirigir. Prefiro parar um pouco e descansar ou então esperar o fim do expediente para usar o medicamento.”
Segundo Alves Júnior, os medicamentos são difíceis de serem detectados no organismo com a realização de testes rápidos, como o do bafômetro, o que dificulta ainda mais o levantamento de dados sobre a relação direta deles com os acidentes de trânsito. “A metabolização é rápida e somente exames de sangue mais completos é que detectarão a presença da substância no organismo”, explica o médico.
Além disso, não é possível determinar um tempo exato de reação dos remédios no organismo por causa das diversas fórmulas e composições existentes e das reações individuais de cada pessoa. O neurofarmacologista Carvalho-Netto explica que, em média, o efeito dos medicamentos é maior nas três primeiras horas após a ingestão, mas é preciso avaliar as reações de cada organismo. “O tempo de reação vai depender de cada pessoa. Os efeitos são diferentes de indivíduo para indivíduo”, explica ele.
Como regra geral, os especialistas alertam que, ao perceber qualquer sintoma, o motorista deve, imediatamente, parar o veículo para repousar e ingerir bastante líquido, aumentando assim o processo de eliminação da substância do organismo. “O motorista não deve voltar a dirigir até que todos os sintomas tenham passado”, alerta Alves Júnior.
No Código de Trânsito Brasileiro não existe nenhuma restrição específica sobre o uso de medicamentos de venda livre relacionados à direção de veículos. Como eles não causam dependência, não podem ser proibidos, como as drogas e o álcool.
FONTE: Agência CNT