A cena já é conhecida dos moradores das favelas da Pedreira e do Chapadão, nas imediações da Pavuna, na Zona Norte: um caminhão entra pelas vielas escoltado por carros cheios de bandidos fortemente armados com fuzil. Em determinado ponto, o cortejo para e, em questão de minutos, a carga é toda jogada no chão. Tudo acontece em plena luz do dia e à vista de quem estiver por perto. O motorista é liberado e tem permissão para deixar a favela ao volante do caminhão vazio. Poucos minutos depois, o local começa a ser visitado por uma série de vans, caminhonetes e outros utilitários de menor porte. São os atravessadores, que distribuirão a mercadoria roubada no comércio da região. Em 2016, nas favelas da Pavuna ou em outros pontos da região metropolitana, tais episódios se sucederam ao ritmo de um a cada hora, totalizando 9 870 casos de roubo de carga no estado, um recorde histórico desde que as estatísticas passaram a ser contabilizadas, em 1992. Esses números dão a dimensão concreta de uma realidade que os motoristas já conhecem: os acessos rodoviários ao Rio, especialmente trechos da Avenida Brasil, da Washington Luiz (BR-040) e da Presidente Dutra (BR-116), tornaram-se território livre para o crime. Por eles passa a maioria dos caminhões que chegam à capital. Também ali ficam os grandes centros de distribuição das transportadoras.
Os responsáveis pelos ataques são velhos conhecidos das forças policiais, os traficantes de drogas que buscam novas alternativas para rentabilizar suas atividades criminosas. A polícia acredita que facções como o Comando Vermelho estejam à frente de mais de 50% desses roubos. “É uma estratégia clara para aumentar os ganhos de forma mais rápida do que no tráfico de drogas”, explica Maurício Mendonça, titular da Delegacia Especializada em Roubos e Furtos de Cargas (DRFC).
Os responsáveis pelos ataques são velhos conhecidos das forças policiais, os traficantes de drogas que buscam novas alternativas para rentabilizar suas atividades criminosas. A polícia acredita que facções como o Comando Vermelho estejam à frente de mais de 50% desses roubos. “É uma estratégia clara para aumentar os ganhos de forma mais rápida do que no tráfico de drogas”, explica Maurício Mendonça, titular da Delegacia Especializada em Roubos e Furtos de Cargas (DRFC).
Os alvos preferenciais dos piratas do asfalto são caminhões carregados de gêneros alimentícios, bebidas e cigarros, que, mesmo em grandes quantidades, são rapidamente distribuídos por uma malha de comerciantes que fazem a receptação, principalmente nas regiões limítrofes da cidade com outros municípios da Baixada Fluminense. Para ter certeza sobre a carga que está sendo transportada, a quadrilha costuma exigir do motorista a nota fiscal antes que o veículo seja levado para a favela. Ali são checados o produto, a quantidade e o valor, o que permite aos assaltantes calcular quanto o carregamento pode render e que tipo de atravessador terá de ser acionado. Normalmente o carregamento é negociado pela metade do valor de mercado. A especialização das gangues é tamanha que mesmo os mais modernos sistemas de localização por GPS e travamento de portas a distância são facilmente driblados. No caso do rastreador, os bandidos usam um aparelho chamado jammer para bloquear o sinal por satélite. “A situação é gravíssima. As pequenas e médias empresas não têm mais como arcar com o aumento nos custos do seguro, que chega a 30%. O transporte de cargas no Rio está se tornando inviável”, afirma Venâncio Moura, diretor de segurança do Sindicato das Empresas do Transporte Rodoviário de Cargas e Logística do Rio de Janeiro (Sindicarga) e coronel reformado da Polícia Militar. Para circularem no Rio, as transportadoras passaram a cobrar taxas extras que chegam a até 1% do valor total das notas fiscais.
Em meio à ruína financeira do estado e à situação precária das finanças da maioria das prefeituras fluminenses, assombra o tamanho do rombo provocado pelos piratas das rodovias do Rio. O Sistema Firjan mostra que o prejuízo relativo somente aos produtos roubados no ano passado chega a 619 milhões de reais, uma conta que não inclui, por exemplo, o que o governo deixa de arrecadar com o comércio clandestino dessas mercadorias, sobretudo aquelas sobre as quais incidem altas taxas de tributos, como cigarros e bebidas alcoólicas. Apenas a Souza Cruz contabiliza em 20 milhões de reais o rombo que teve em sua receita em decorrência dos assaltos a seus caminhões nas estradas fluminenses. Segundo os cálculos da empresa, o volume de ações criminosas contra seus transportadores no Rio aumentou 127%, índice seis vezes maior que o do resto do país. E a conta, inevitavelmente, acaba chegando ao bolso do consumidor. “Os custos com segurança, que variam de 12% a 30%, são repassados diretamente para o preço final dos produtos”, explica o economista Riley Rodrigues, gerente de estudos de infraestrutura do Sistema Firjan.
As perdas econômicas são somente a face mais visível — e contabilizável — do caos que tomou as margens das rodovias fluminenses. Começam a se tornar recorrentes casos em que viajantes incautos são vítimas de episódios de violência nas estradas. Na noite de 10 de fevereiro, o arquiteto Fábio Hamdan Silva, 41 anos, seguia para Petrópolis em companhia de sua mulher, a executiva Daniela de Oliveira, pela Rodovia Washington Luiz. Em Duque de Caxias, o automóvel do casal cruzou com uma perseguição na pista contrária, onde policiais e bandidos trocavam tiros. Passada a surpresa com a cena, Silva só teve tempo de dizer a sua mulher que havia sido atingido por um disparo. Ela conseguiu controlar o carro até o acostamento e chamar socorro, mas o marido morreu em decorrência de uma perfuração por bala de fuzil a caminho do hospital. Uma semana depois, no dia 17, uma tentativa de roubo de carga no Arco Metropolitano, na altura de Japeri, provocou outra violenta troca de tiros. Em meio a motoristas que tentavam se esconder como podiam, um vigilante foi morto e os bandidos chegaram a atirar no helicóptero da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que dava apoio à operação.
Se o aumento de roubos de carga cravou recordes absolutos sucessivos nos dois últimos anos, esses crimes vêm se acentuando, na verdade, desde 2012, quando a política de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criada pelo ex-secretário de Segurança José Mariano Beltrame, começou a desandar. Soma-se a isso a crise na economia, que impulsionou uma piora considerável na estrutura da Polícia Rodoviária Federal, cujo efetivo diminuiu 36% no Rio nos últimos cinco anos. Além disso, o governo estadual perdeu grande parte dos profissionais da delegacia especializada, a DRFC — do grupo de 106 policiais designados em 2004, sobraram apenas 48. As verbas para as operações de inteligência da delegacia são pífias: enquanto em 2014 foram empenhados exatamente 39 850,70 reais, no ano seguinte o estado destinou apenas 21 641,15 reais para tal função. Uma operação batizada de Asfixia, da Policia Civil com apoio da Força Nacional, reprimiu o roubo de carga na região da Pavuna nos últimos dias de 2016. Com o patrulhamento nas rotas de fuga dos bandidos, os casos caíram de 1 329, em dezembro, para 693, em janeiro deste ano. Mas ainda não existe uma política institucional para a área. Por enquanto, o único diálogo entre as polícias Militar, Civil e Rodoviária Federal acontece em um grupo no WhatsApp. “Buscamos manter um trabalho conjunto com as polícias Civil e Militar, mas tudo é feito de forma quase pessoal. Se muda o coronel do batalhão, precisamos começar tudo outra vez. Não há uma política para o tema”, critica Rafael Alvim, chefe da Seção de Policiamento e Fiscalização da Polícia Rodoviária Federal no Rio.
O problema nas estradas fluminenses é tão grave que já ganhou visibilidade internacional. Relatório recente do JCC Cargo Watchlist, elaborado pelo Joint Cargo Committee, que avalia o risco para as seguradoras, aponta o Brasil e, mais especificamente o Rio, como área de alta periculosidade para transporte. O país aparece em 12º lugar entre os mais perigosos, perdendo para nações em guerra como Síria, Líbia e Iraque. Segundo o relatório, o Rio concentra quatro em cada dez roubos no país. Enquanto as transportadoras buscam reforçar sua segurança com escolta armada e tecnologia, a indústria e o setor do comércio também correm atrás de soluções. A Associação de Supermercados do Estado do Rio de Janeiro vem liderando uma série de discussões para melhorar a segurança das estradas fluminenses. Uma ideia é criar um projeto semelhante à Operação Presente, em que iniciativa privada e estado, juntos, arcariam com custos de policiamento complementar nas estradas. “As conversas ainda estão no início, mas pensamos em seguir o mesmo modelo”, afirma Fábio Queiróz, presidente da associação. Medidas que levem a punições mais duras para o crime de receptação de produtos roubados também são estudadas. As vidas perdidas e os prejuízos imensos que decorrem do roubo de carga no Rio clamam por urgência.
FONTE: Veja Rio