Entregando cargas há nove anos, ele atribui à sua crença evangélica o pedido inusitado que fez à funcionária da sala de monitoramento, em 31 de julho, no início do seu turno noturno. “Fica de olho em mim no painel, por favor? Estou com um pressentimento ruim”. Uma hora depois, o telão que rastreia em tempo real 250 veículos, emitiu o alerta que um caminhão havia saído da rota. A intuição do motorista não falhara: ele tinha sido rendido por criminosos da Cidade Alta. “Ser motorista de carga no Rio está tão perigoso quanto ser policial. Você não sabe se volta pra casa”, desabafou.
Com medo de represálias de assaltantes, de forma anônima, motoristas de cargas conversaram com o DIA a respeito dos assaltos, sequestros e da rotina de medo que enfrentam no trabalho. Roubos de carga aumentaram quase 25% no primeiro semestre de 2017 em relação ao mesmo período de 2016. Foram 5.179 casos de janeiro a junho desse ano. Ou seja, mais de 5 mil vezes motoristas ficaram reféns, sob a mira de armas, e às vezes torturados.
Foi o caso de um motorista que transportava refrigerantes, no início do mês. Rendido na Avenida Brasil, ele teria que dirigir até o Chapadão, em Costa Barros. A seguradora, ao observar no monitoramento que o caminhão tinha saído da rota, cortou a energia do veículo, forçando parada. Os bandidos, então, ligaram para a empresa. “A polícia não vai vir aqui. Nós vai balear ele. Vocês não estão nem aí para a vida dele. Desbloqueia essa p*rra logo”, disse o bandido na ligação. Ao fundo, o motorista chora e implora o desbloqueio. Ele está de licença, em recuperação.
Na tentativa de aumentar a segurança dos funcionários, a transportadora Ziranlog investiu em um sistema chamado ‘cerca eletrônica’. “Uma luz pisca no painel do caminhão quando o mesmo se aproxima de um local com roubos. Se o veículo se aproximar muito, a central corta a energia dele à distância”, explicou Yggor Mateus, 29, coordenador da frota.
No entanto, o sistema já é burlado com o uso do aparelho ‘Jump’. O dispositivo é acoplado no rastreador e emite um sinal de normalidade para a central. “Levava carga, quando um motoqueiro apontou a arma. Parei e um dos criminosos entrou na cabine. Fui obrigado a ir até o Chapadão”, relembrou um motorista da empresa. Sequestrado com a carreta, ele viu 10 toneladas de biscoitos serem descarregadas em uma hora.
“Mandaram eu sentar em um bar de um morador, onde o dono veio e me disse: já vai acabar. Você quer algo? Respondi: tem calmante?”, contou, rindo. Depois, emendou: “O humor faz aguentar o medo. Agora, se um carro faz seta ao meu lado, eu já olho procurando uma arma”. O motorista lamenta a banalização do crime.
“Quando saí da favela, vi uma viatura. Os caras nem perguntaram como eu estava e mandaram dirigir até a delegacia. Já é normal para eles”, contou. Durante a entrevista, ele lacrimejou ao ouvir o relato do colega que teve o pressentimento do assalto iminente. O religioso tentou acalmá-lo. “Pensa em Deus. Eu rezo sempre ao passar na Brasil e peço aos querubins que me guardem na rodovia”.
Condutor foi afastado após ataque
Desde o dia 7 de julho, um motorista da Tranziran está de licença psiquiátrica após ter o para-brisa do caminhão atingido por três tiros. Em alta velocidade, ele não conseguiu atender a ordem de parada dos marginais na Via Dutra. Os disparos não o feriram, mas o choque foi tão grande que ele não conseguiu conter o choro no trajeto de volta para a empresa, na Penha.
O gerente de rastreamento, Fernando Lima, 39, teme que ele não consiga retornar ao trabalho, assim como outros motoristas que pediram demissão por conta de assaltos. “Esse ano foram quatro pedidos demissionais, o último foi nessa sexta. O motorista disse que está paranoico o tempo todo e não pode viver assim. O pior: ele não tem outra opção de emprego”, relatou.
DEPOIMENTOS
‘Me recuso a dirigir à noite’
Estava na Avenida Brasil, altura de Guadalupe. Tento sempre dirigir na pista lateral, pois assim o lado da direção fica do lado do acostamento da pista. Mas começou um engarrafamento e fui para a pista do meio.
Tinha um carro enguiçado e desacelerei. Uma moto veio e apontou uma arma. O carro quebrado, na verdade, era um disfarce dos bandidos. Mandaram eu dirigir até a Cidade Alta, mas no caminho rezei e joguei a carreta para cima de uma viatura. Teve tiros e os bandidos fugiram. Voltei a trabalhar, só que agora me recuso a dirigir à noite.
X, caminhoneiro, 49 anos, na profissão há 12
‘Eles podem te ferir só de raiva’
Nunca tinha sido assaltado. Só que isso mudou há 20 dias. Estava a caminho de uma empresa onde iria abastecer com uma carga de lubrificante.
Cerca de 20 minutos após começar a trabalhar, fui abordado por bandidos com fuzis, em dois carros e duas motos. Só pensava na minha filha, minha joia. Pedi a Deus para voltar para casa. Falei que estava vazio. Fiquei com medo porque a gente não sabe o temperamento deles, podem ferir a gente só de raiva. Me despeço da minha família agora como se fosse a última vez. A gente não sabe se volta.
Y, motorista interestadual, 55 anos, na profissão há 27 anos
A PROFISSÃO
SALÁRIO
O líquido varia entre R$ 2 mil e R$ 3.500, dependendo do número de cargas levadas. Motoristas que trabalham à noite recebem mais.
JORNADA
O padrão das empresas é turno de 12 horas de trabalho, revezando com 12 de descanso. Segundo gerentes, há aumento a recusa de trabalho no horário noturno, período de maior incidência de roubos.
CARGAS
Perfumaria, carnes e eletrodomésticos são as cargas mais procuradas. Empresas pagam mais aos motoristas que concordam em levar esse tipo de material.<EM>
ROUBO
Segundo a PM, cerca de 57% das cargas roubadas vão para para as comunidades da Pedreira e Chapadão.
FONTE: O Dia